Vocês sabem que critico a estrutura patriarcal e luto todos os dias para me desfazer do comportamento sexista que existe em mim. Faço isso para plantar sementes anti-patriarcais que poderão florescer um futuro de liberdade para as mulheres que virão depois de mim.
Hoje decidi contar para vocês um pouco sobre o meu feminismo, já que não tenho rótulo certo.
Riot Grrrls
Meu primeiro contato com feminismo foi com a música, pelas bandas de mulheres que tocavam punk: Bikini Kill e Le Tigre, eram minhas preferidas. Elas faziam parte do movimento Riot Grrrls que na época eu não entendia muito bem, mas me identificava com a ideia de rebeldia e desconforto em ser mulher, principalmente na complexidade dos anos 90. As mulheres podiam ficar quase nuas na banheira do Gugu, mas também eram chamadas de putas se usassem roupas curtas. Eu também sentia a pressão de parecer feminina desde muito cedo embora não me identificasse com as roupinhas que esperavam que eu vestisse. Eu era uma adolescente típica, deslocada, desconfortável, irritada e entediada.
Para mim, Riot Grrrls era mais do que um movimento político e social, o ódio ao patriarcado explicava muito o desconforto que a minha pele de “mocinha” sentia. Foi quando tive algum contato com questões de gênero, sexualidade e diversidade cultural. Ainda sem muita clareza, mas as frases de efeito me despertavam. Tinha uma saída, já que alguém estava berrando sobre o assunto.
Don't you talk out of line
Don't go speaking out of your turn
Gotta listen to what the Man says
Time to make his stomach burn
Burn, burn, burn, burn
Não fale fora da linha
Não fale fora da sua vez
Tem que ouvir o que o Homem diz
Hora de fazer seu estômago arder
Queime, queime, queime, queime
— Double Dare Ya, Bikini Kill
Eu tinha a sensação constante de que nada podia: fale baixo, espere seu pai, se continuar assim nunca vai arrumar um namorado, se não varrer a casa direito casará com homem remelento. Encolhe a barriga, homem não gosta de gorda. Passa um pozinho nessa cara oleosa. Fala demais, assustas os meninos. Desobedecer às normas era uma necessidade urgente para manifestar a raiva que eu sentia por não me conformar com a domesticação. Eu simplesmente não estava disposta, mas às vezes eu caía. Sabe como é.
A obrigação de encaixar na regrinha de agradar os meninos me doía — eu sentia vergonha de ter passado o comecinho da minha adolescência só pensando em paquera. Ficava abestalhada e não prestava atenção na aula enquanto escrevia “Tássia e Fulano se amam”. Pois é. Depois dos 14 entendi que tinha algo muito errado com o comportamento imposto às meninas e passei a sentir nojo. Naquele tempo, beijar a força chamavam de “beijo roubado” e quando passavam a mão no seu corpo sem consentimento, falavam que era “tirar casquinha”.
Ano passado, chorei em silêncio no show de Bikini Kill. Gatilhos. Sentimentos. Raiva. Minha adolescência foi muito desconfortável num corpo pequeno de mulher tolhido pela masculinidade tóxica que sempre esteve me observando, me cutucando, esbarrando a mão em mim. Ou me chamando de gorda. Muitas vezes, eles só lançavam um olhar violador que me faria morrer de medo. Fui violada muitas vezes, os homens sempre ignoraram a fronteira.
Assim me tornei uma mulher com ódio, sempre desconfiada. Por ter um relacionamento heterossexual — sim, me casei com um homem — vivia em alerta, mas tive sorte o bastante e estou mais tranquila. A socialização masculina tem suas brechas, aparentemente. Ser lésbica, como meu pai desconfiou (skatista nos anos 00, rs) certa vez, teria sido mais fácil? Creio que não. Sigo amando mulheres sem desejo sexual, no entanto.
Mulher fruta, objeto
Na faculdade, tive contato com a objetificação feminina nas aulas de sociologia. O assunto se conectou com os ideais feministas que eu tinha. Escapei do feminismo liberal e entendi que prostituição e pornografia não empoderavam mulher nenhuma, em lugar nenhum no mundo. Um problema coletivo, fundamentado na escravização de mulheres desde à idade antiga. Não é a profissão mais antiga do mundo, é uma das formas de exploração mais antigas do mundo, como mais tarde aprendi com Gerda Lerner, em A Criação do Patriarcado.
Lembro de uma aula que conectava a música pop com as violências contra a mulher e violência doméstica. Não era sobre conservadorismo, era sobre reforço de papel de gênero, mulher objeto, mulher fruta. Corpos violáveis. A indústria enxerga as mulheres assim e — tranquilamente — hipersexualiza nossos corpos porque sexo vende demais. Que maravilha o dinheiro. E quem toma as decisões, são homens. A culpa não é mulher.
A vida seguiu e, depois da faculdade, estive sempre mais preocupada em trabalhar do que em me politizar, verdade seja dita. Uma pena. Até que o feminismo voltou à pauta em forma de incômodo com a pornografia. Sempre odiei, sempre achei violento, repugnante. Vi um documentário sobre a vida das atrizes pornô e ainda lembro de uma moça, super jovem, engolindo balas coloridas para ter energia para trabalhar com a barriga vazia porque era dia de anal. Não tem alegria, não tem prazer, é só violento.
Curiosamente, o que me levou a pensar nisso foi um ex que amava pornografia. Eu desconfio de todos os homens do mundo, mas ainda mais dos que gostam de pornografia. Sobram poucos — eu sei.
Atualmente
Acredito no feminismo Silvia Federici e Gerda Lerner que sobretudo criticam o capitalismo e o patriarcado, e argumentam que esses sistemas de poder são interligados e se sustentam reciprocamente. Estou sempre pensando no comportamento que repito desde que fomos domesticadas, principalmente ali pelo século XVI, quando aconteceu o maior genocídio de mulheres da história da humanidade — também conhecido como “Caça às Bruxas”.
Nessa época, as mulheres boazinhas que cuidavam dos maridos e pariam novos trabalhadores eram poupadas. As rebeldes, inconformadas, que tentavam manter suas terras para subsistência eram acusadas de bruxaria. As práticas “mágicas” eram proibidas porque empoderavam contra a ordem do estado que se formava. Imagine só, uma mulher que sabe de si, que usa um oráculo, que cura as próprias mazelas ou que conhece ervas que evitam uma gravidez forçada — não pode isso.
Contra o patriarcado
Silvia Federici e Gerda Lerner me ajudam a entender que a minha causa é anti-patriarcal e isso é mais importante do que qualquer coisa. O meu feminismo é sobre as opressões que mulheres sofrem desde os primórdios até hoje. Hackear o patriarcado para quebrá-lo um dia é a minha causa.
Marx, quando defendeu os trabalhadores, passou batido pelas mulheres como se fossemos a decoração da sala. Mas não somos enfeite: parimos, alimentamos e mantemos a casa funcionando para o trabalhador operar as máquinas. Entendo as pessoas que rejeitam os papéis de gênero de cada sexo. Também não quero obedecer.
Duas premissas básicas subjacentes a essas leis (117 e 119 do Código de Hamurábi) permaneceram intocadas: a de que parentes homens têm o direito de dispor de parentes mulheres e a de que a esposa e os filhos de um homem fazem parte de sua propriedade e devem ser usados como tal.
— Gerda Lerner, A Criação do Patriarcado (pp. 125 – 126).
Você deve lembrar do Código de Hamurábi das aulas sobre Império Babilônico. Uma das leis mais famosas era a “olho por olho e dente por dente”. E já deve ter visto dados como este aqui:
Ontem, no voo de Roma para casa, estava sentada entre dois homens. Reparei que eles tinham passatempos parecidos no celular, joguinhos coloridos, tipo Candy Crush. No centro, eu começava a leitura de The Witches: Salem, 1692. Claro que foi uma coincidência, mas o contraste me fez ver a tranquilidade de quem tem as leis criadas para si, por iguais. E mulheres, escanteadas dos direitos humanos, atentas. Nessa hora, escapou no meu colo um pedaço de papel que dizia: “desejo que um dia as mulheres passem a ser respeitadas não apenas como seres humanos, mas como mulheres”.
Um turbilhão de mensagens veio à mente.
Números de violência contra a mulher que me incomodam e me fazem querer ler sobre isso, escrever, conversar com amigas, tentar protegê-las, indicar livros, perguntar como estão, fazer um pix, sei lá. Esse assunto me belisca todos os dias, me move, me ferve o sangue.
Conscientizar mulheres da importância de nos tornarmos independentes e donas de nós mesmas, capazes de decidir o que queremos fazer. Autoridade sobre nós mesmas. Empreste dinheiro para uma amiga, compre das suas amigas, divulgue o trabalho das suas amigas. Enquanto o capitalismo estiver de pé, dinheiro é a chave da porta.
Até semana que vem,
Tássia.