Um dia desses em Helsinki.
Estava voltando para casa de trem e meu celular descarregou. Guardei os fones e procurei um livro na bolsa, porque ainda tinha umas dez estações até o centro. Olhei para o lado e cogitei explorar visualmente o caminho, a janela do trem é um filme. Estiquei o campo de visão, mas não tinha muito. A neve cobre tudo.
Um sapato social esbarrou no meu tênis e um homem de uns 60 anos me pediu desculpa, em finlandês. Ele usava um sobretudo bege, boina e camisa xadrez. Os suspensórios seguravam a calça; e o cachecol azul-marinho com detalhes verde-escuros protegiam o pescoço. Era gordo, usava óculos e apertava um jornal debaixo do braço.
Os dois bancos vermelhos na minha frente estavam desocupados, mas ele estava de pé. Quando o trem parou e algumas pessoas desceram, ele apoiou a maleta no banco. Marrom, gasta, daquelas que as pessoas usavam para carregar documentos quando eles não cabiam no celular. Em seguida, ele se sentou olhando para mim e apontou para a janela com o olhar. Estiquei os olhos tentando entender. “As criaturas se escondem na neve”, ele me disse, quase que num sussurro.
Arregalei os olhos e repassei o que ele disse na minha cabeça para checar se tinha algum mal-entendido na tradução. Não encontrei nada, e perguntei: “que criaturas?”. O homem demonstrou surpresa e insatisfação. Estava escrito na expressão dele: “como você não sabe?” mas o que saiu pela boca foi: “você não conhece ou não acredita?”. Jurei que não tinha ideia do que ele estava falando.
“Vou descer na próxima. Tome cuidado com os lugares onde a neve está muito alta, especialmente se tiver água em volta”. Levantou e foi andando para o final no trem. Eu não me mexi — embora a ideia fosse maluca, o homem parecia sóbrio, convincente. Ele esqueceu o jornal. Peguei rapidamente e coloquei debaixo do braço.
Até o centro, fiquei colada na janela vigiando as criaturas que se escondem debaixo da neve.
Eu também saio com uma nota do ouvir mais e vivo esquecendo ela sob a mesa. Um exercício e tanto...
Nós do sul olhamos as nuvens em dias de céu azul para vermos criaturas, no Norte, a neve deve ser tipo as nuvens. É só usar a imaginação ✨