“Escreva como se ninguém fosse ler” — um conselho antigo de escrita para incentivar os escritores a deixarem que a alma escape pelas pontas dos dedos.
Quando penso nisso meu coração palpita mais rapidinho porque ele escuta as vozes das minhas profundezas ecoando baixinho. Quando eu estava fazendo terapia com uma psicóloga-astróloga, falamos sobre isso e, de um jeito bonito, ela me contou que meu plutão em escorpião era como um redemoinho no peito expondo as profundezas do rio denso e escuro que vive em mim.
Nasci às margens do rio mais volumoso do mundo: Amazonas. Marrom-lama-chorona, intensa, inflamada, lenta, barrenta, ácida, turva, perigosa, dissimulada, misteriosa.
Escrever é antes de tudo acessar essas águas profundas. Tampar o nariz e descer até onde a respiração aguenta e logo emergir com a agonia de não ter tocado o fundo com a ponta dos dedos. Quando penso em escrever algo que ninguém vai ler, não dá pé, é perigoso. Como se não bastasse, uma folha, um plástico ou um animal misterioso passa pelas minhas coxas e eu me sinto tão vulnerável. E se alguém abrir esse caderno e descobrir algo que nem eu gostaria de saber?Uma mistura de dor e vergonha.
Quando meu pai morreu descobri histórias sobre o meu passado que não poderiam ter sido ditas quando ele ainda estava aqui. Escrever de peito-aberto-redemoinho é mexer com esse tipo de ferida. Como se a escrita fosse um médico sem tem medo de tocar seus pacientes, examiná-los, fazer-lhe perguntas interessadas para descobrir a causa da dor e receitar o remédio acurado. Cura.
Uma conversa sincera com as minhas ancestrais
Eu tenho uma coisa estranha com igrejas: ao mesmo tempo em que as detesto e tenho pavor da religião, me sinto atraída. Literalmente magnetizada. Sempre que estou passeando e com tempo livre, se vejo uma igreja, entro e fico ali um tempo parada meditando. Não sinto as dores pelo mal que a igreja fez às mulheres, embora tenha claro na minha mente que ali está a materialização da instituição que matou mulheres pelo mundo inteiro. A Santa Inquisição foi um genocídio de mulheres.
Na última vez que entrei numa igreja — me refiro à igrejas católicas —, foi na Lituânia, em Vilnius. Não era a catedral mais importante da cidade, foi uma outra igreja menor que encontrei pelo caminho na cidade antiga. Entrei, sentei e fiquei ali um tempo, como sempre faço. Eu não sou batizada, nunca provei da hóstia sagrada, mas os anos no colégio católico me deram alguma familiaridade. Me sinto à vontade na casa de Deus.
Essa igreja tinha muitos detalhes dourados como muitas outras têm, mas reparei que eram especialmente feios e bregas: corações dourados colados na parede. Jesus teria detestado o design de interiores de todas as igrejas e aquela certamente estaria entre as que ele teria gostado menos. Ele teria doado tudo para os fiéis. E para os infiéis também.
Fechei meus olhos para tentar entender o que estava fazendo ali.
Neste momento, uma das minhas ancestrais sentou-se do meu lado e cochichou baixinho as respostas paras as perguntas que formavam uma nuvem escura sob a minha cabeça. Abri meu coração para ouvi-la entre as preces dos fiéis que pediam proteção e o fim da guerra de Putin.
Ela me disse que — apesar de tudo — era nas igrejas que mulheres como ela comungavam e sussurravam seus pensamentos sobre o mundo que se virava contra elas. Tinham clareza de que as leis divinas estavam sendo manipuladas por homens maus que queriam que as pessoas sofressem. Em sofrimento, clamariam e depositariam até a última gota de dignidade na igreja. Deus não falha. Se não deu certo é porque falta fé.
Ela me disse que a igreja enlouquecia as pessoas — até as que eram conscientes no começo cederam à pressão da sociedade e dos maridos e passaram a acreditar no surto coletivo que criou as bruxas más, feias, narigudas, comedoras de crianças. Muitas resistiram às ideias misóginas que queriam destruí-las. Era difícil. Elas viviam em segredo e fingiam crer nas mentiras dos homens maus.
Mas no fundo sabiam de tudo. Lutaram e, de certa forma, conseguiram sobreviver. Eu estou aqui e posso pensar sobre isso. O pensamento resistiu. Mas muitas mentiras também sobreviveram e, por isso, hoje e para sempre, é preciso estar forte e atenta.
Os homens maus sempre voltam.
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Falando nisso
Ainda não escrevi sobre Abracadabra 2, mas queria dizer que não decepciona as bruxas feministas que tinham questões sobre o primeiro filme. Eu sempre fui fã declarada sem passar pano pro roteiro machista — filmes “bobos” para criança deveriam ser muito mais responsáveis com essas questões.
Até domingo que vem.
Tássia
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Tassia dei uma oficina de Cartas no sábado e falei bastante sobre esse escrever com a ideia de que ninguém vai ler (nem mesmo quem escreve depois), acho isso mágico, é uma espécie de autorização para o corpo e a alma se soltarem. Lindo demais ❤️