Uma voz no fundo da minha cabeça que diz que eu não mereço. Toda indulgência vem com culpa. É uma merda. Às vezes, eu acho que foi de tanto ouvir “não peça nada” quando era criança, às vezes acho que é só culpa cristã. Se tem gente que não tem chinelo, por que eu mereço um carro importado? Juro que coisas assim passam pela minha cabeça.
Só se Deus quiser
Shtisel (Netflix) me deixou revirada.
Passei três temporadas envolvida com a vida de judeus ortodoxos, aprendi algumas palavras em hebraico (shalom shalom!), chorei de soluçar ao lado do Akiva (não foram poucas vezes), abracei a Ruchami e disse a ela o quanto ela era forte.
Aconselhei Gitti a ser mais leve consigo mesma, mas ela só ouve o pai, Shulem Shtisel, um rabino duro como carne de pescoço que parece muito com a voz que diz que eu não mereço.
Ele acredita que seremos felizes se a felicidade estiver nos planos de Deus. E já que tudo o que acontece entre o céu e a terra tem uma razão divina, devemos seguir os mandamentos à risca.
Se tenho uma ideia ousada, Shulem me olha por debaixo dos seus oclinhos com um olhar reprovador, como se eu estivesse estendida no chão pedindo socorro. Se algo me enche de alegria e tenho vontade de sair pulando por aí, ele me pergunta se já cumpri com todas as obrigações.
É como se ele pudesse passar o dedo na poeira das minhas inseguranças e me mostrar o pó acumulado: tá sujo aqui.
Shulem vive dentro da minha cabeça. Está sempre me cobrando. No fundo, eu até sei que não devo dar ouvidos, mas ele me atrapalha, me faz chorar, me deixa ansiosa, me compara. É dolorido demais.
Mesmo assim, vale muito a pena assistir Shtisel no Netflix. Shira Haas (Nada Ortodoxa) tem um papel lindo como Ruchami.
Só depois do trabalho
Quando a mãe de Vasalisa morreu, seu pai tratou logo de encontrar uma nova esposa. Um mês depois, a madrasta e suas duas filhas insuportáveis já estavam morando na casa de Vasalisa. A preocupação do pai era que ele sempre viajava a trabalho e a menina ficaria sozinha.
Logo na primeira viagem, a madrasta se revelou uma megera obrigou a menina a cuidar de todas tarefas domésticas, cozinhar e mimar suas irmãs postiças. Vasalisa fazia tudo sem reclamar porque queria conquistar a o coração da madrasta.
No ápice da maldade, a megera mentiu que o fogo da casa tinha acabado e mandou a menina entrar na floresta sombria para pedir fogo à Baba Yaga (elas estavam na Rússia, então imagine o frio).
Baba Yaga era uma bruxa sinistríssima que vivia no fundo da floresta. Ela voava num caldeirão e usava uma vassoura de cabelos humanos para guiar o caminho. A cabana onde ela morava tinha pés de galinha gigantescos e dedos humanos nas portas e janelas.
A madrasta queria que a menina fosse devorada pela bruxa ou morresse congelada antes de chegar na cabana da velha. No entanto, ela não sabia que Vasalisa tinha uma bonequinha mágica que sabia das coisas. Foi com a ajuda da boneca (que simboliza a intuição) que a menina percorreu a floresta e conseguiu encontrar a Baba Yaga.
- O que você quer, menina?
- Dona Yaga, vim pedir um pouco de fogo porque a minha casa está congelando.
- Que estupidez! E por que você acha que eu lhe ajudaria?
- Porque estou pedindo, ora.
- Hunf. Você tem sorte. Essa é a resposta certa.
Mas não foi só isso.
A velha aproveitou a vantagem e disse que só ia dar uma brasa acesa depois que Vasalisa fizesse alguns serviços na casa imunda. Ela varreu, passou, lavou, cozinhou e até separou o cocô das sementes de papoula — sempre seguindo o que a boneca lhe dizia para fazer.
Enquanto Vasalisa fazia o que a velha lhe mandava (com a ajuda da boneca), ela aprendeu a reconhecer a natureza sombria e deixou morrer seu lado boazinha demais. No fim, recebeu a caveira com o fogo mágico para iluminar o caminho de volta.
Quando chegou à casa, a caveira incandescente reluziu e destruiu a madrasta megera e suas filhas.
O conto de Vasalisa e Baba Yaga termina bruscamente, e eu me pergunto: será que madrastas imaginárias, como a que vive na minha cabeça, também podem ser destruídas com uma caveira incandescente? Se sim, acho que vale a pena tentar.
Até a próxima,
Tássia
Que texto tão cheio de ótimas referências! Já assisti Nada ortodoxa e fiquei muito envolvida. E adoro o conto da Baba Yaga, diz muito sobre nós mulheres e a nossa relação com o mundo.
Que delícia te ler!
Eu te sinto ❤️