Pelo menos saí do Twitter
Mais uma história de abdução extraterrestre, Secret Club, o sonho de Eeva e vida que segue.
Oi, gente!
O Brunch atrasou. Esperei o texto vir com mais naturalidade. Acho que assim faz mais sentido.
É a Zelda que me leva para passear. Eu só coloco a coleira e vou seguindo. Ando no ritmo dela para sentir qual lado ela prefere, se quer atravessar a rua, parar num canto aleatório e enfiar o nariz onde outro cachorro claramente acabou de fazer xixi. É bom ser levada, é mais fácil do que escolher. Quando vem um cachorro, é ela que decide se quer bater papo ou passar reto.
A gente sai mais à noite, porque fico o dia com as mãos ocupadas no teclado do computador e os olhos saltando de uma aba para outra, abrindo e fechando o mensageiro, para não perder nenhuma mensagem importante. Quando quero procrastinar organizo a área de trabalho. Assim, escorregam as poucas horas em que o céu não está tão escuro e dá para enxergar melhor o mundo.
Ontem, Zelda estava mais curiosa do que antes de ontem e por isso subimos a escada do parque na escuridão mesmo. Ela quis cheirar as plantinhas, a neve derretida e pular na lama gelada. Eu estava sem o celular, portanto atenta à calçada, aos entregadores de patinete. O celular me bloqueia. Vou e volto sem saber por onde passei, não vejo nenhuma pessoa na rua e é também como se eu ficasse invisível. É meio sei lá, meio metaverso.
Dessa vez, estava atenta.
Ouvimos um homem tossindo e Zelda foi puxando em direção ao banco onde o homem estava sentado, fumando um cigarro e tossindo. Quis oferecer um copo d’água para a garganta seca arranhada. Cabeça baixa, tosse seca. Zelda, marcando o território, até levantou a pata para fazer xixi, que nem macho. Fingimos não ouvir a tosse até que os olhares se cruzaram.
Um espírito atravessou meu corpo. Senti aquele calafrio que chacoalha os ombros como uma dança engraçada. Minhas sobrancelhas saltaram para o alto e meus olhos se arregalaram de doer. Pisquei forte para não fugirem da órbita. Do outro lado, os olhos do homem pegavam fogo. Azul-violeta. O homem-luminária tinha a lâmpada em cima do pescoço. Um vaga-lume de ponta-cabeça.
Ele também se assustou — como se tivéssemos descoberto seu esconderijo. Ou como se ele fosse invisível e a gente tivesse atravessado um portal. Eu duvido. A tosse era real, eu conheço.
Meu corpo congelou como num sonho. Cai no chão e a Zelda latia sem parar. Acho que ela pensa que morri.
Ser abduzida não dói.
Você sente uma paz e parece que não tem ninguém em volta. O cérebro fica absorto, mas não relaxa. Os estímulos infinitos de luzinhas me deixaram em transe. Hipnose leve. Alguns extraterrestres fazem dancinhas e ensinam a tirar o óleo da sopa com uma concha cheia de gelo. Mas a sensação é de que estou sozinha no mundo, distraída, andando para cá e para lá sem prestar atenção no caminho. Pode ser que pise no cocô, esbarre em alguém ou quase seja atropelada. Não dá para ouvir muito bem. Às vezes, ouço uma voz de fundo e consigo murmurar: unhum, já vou.
Desabafo leve 🤖
Sigo perturbada com celular e redes sociais. Odeio como isso me rouba e me deixa agitada, ansiosa. Domingo à noite, tive que desligar o telefone para assisti Persuasão (Netflix).
Secret Club
Já falei um pouco do Secret Club — um clube de mulheres que criei para fazer amigas aqui em Helsinki. Ele é parte do Brunch, um spin-off. Uma materialização dos nossos ensaios sobre o papel da mulher, criatividade feminina e como colocar a máscara de oxigênio primeiro em si.
Ter mudado de país e ter um novo idioma para me comunicar no presencial não impediu a evolução da ideia. Ela flui. Magicamente resiste. A ideia é rebelde, teimosa.
Mês que vem, estarei no Brasil. Vou para Brasília e para São Paulo. Quem sabe a gente não faz um encontro do Secret Club por aí? Seria incrível. Se você gostar da ideia, me responde por e-mail.
O sonho de Eeva
Sábado estava andando pelo bairro e me deparei com este brechó.
Eeva-Helena me disse que o Numpty é seu passatempo caro — a loja não se paga. O aluguel é caríssimo aqui no Punavuori. Mesmo assim, todo sábado ela vem de Espoo (cidade vizinha) até Helsinki e passa a tarde na loja. Quando cheguei, ela estava organizando roupas por década. Fiquei curiosa e perguntei sobre as peças, sobre o local e engatamos uma conversa longa. No final, eu já queria passar a tarde organizando a loja com ela. O lugar é apertado e tem de tudo. Não é só brechó de roupas vintage das décadas de 40 a 90, tem também acessórios, pôsteres e objetos de decoração.
O sonho de Eeva é que as peças encontrem seus donos — Numpty é um lar temporário. Muitas já foram do acervo pessoal, de quando ela gostava mais de festas. Ainda assim, as roupas duram até hoje — ela me mostra como são diferentes das peças descartáveis que as lojas vendem atualmente. É verdade. Tecido e acabamento excelentes. Quem sabe garimpar ficaria feliz.
As camisas dos anos 70 contrastam com a moda escandinava que já faz parte do cenário de Helsinki. Cinquenta tons de bege, nude e off-white. As jovens amam. Em contrapartida, o mundo precisa de mais cores, nós duas concordamos. Eeva-Helena acredita na autenticidade e lamenta como as pessoas repetem o que veem na internet ao invés de criarem o figurino do seu próprio personagem. A gente esquece que pode — tento defender uma geração inteira que esqueceu que pode vestir-se de si.
Me despedi com um anel de miçangas do Brasil. Ela me ofereceu de graça, mas fiz questão de pagar e espero que o Numpty continue resistindo com a rebeldia de que as pessoas podem se vestir do que quiserem, podem até usar cores e, principalmente, vestir roupas que já existem no mundo.