Não há voo para civis no espaço aéreo da Ucrânia
Eu não tinha planejado pensar ou sentir um pedaço da história da Lituânia. Eu vim pra Vilnius jogar boliche e conhecer os meus colegas de trabalho pessoalmente. De quebra, aproveitei para passar dois dias passeando na cidade.
Vilnius, 27 de novembro de 2022.
Caminhando pelo centro da capital da Lituânia me dei conta que é o mais soviético que já fui até agora. Estou falando de aparência, porque a Finlândia tem um quê de soviética também. Daí depois me dei conta que não é só aparência — este é de fato um dos países que se formaram depois que a URSS desmoronou, em 1991.
A cidade é bonita e bem cuidada e as pessoas são simpáticas e têm aparência mais diversa do que eu estou acostumada a ver na Finlândia. A maioria fala inglês, mas teve uma loja em que a moça me pediu outro idioma: russo? Deu pra me virar.
Na recepção do hotel, pedi uma informação e a atendente esqueceu como era a palavra “farmácia” em inglês. Ela foi chutando as palavras que conhecia, até que “apotheke” eu peguei. Não sei um ai em alemão, mas “apteekki” é como se diz farmácia em finlandês.
Conversas atentas, no boliche e no bar
Além de lituanos, conheci russos e ucranianos fugidos da guerra estúpida de Putin. Mas nem todos moram aqui, alguns foram para a República Tcheca que agora se chama apenas Tcheca e eu acho estranho esse nome. Nossos colegas que estão na Ucrânia não puderam vir porque os homens não podem sair do país (serviço militar) e as mulheres até podem, mas como não há voo para civis no espaço aéreo da Ucrânia, acabou não rolando.
Conversamos sobre a vida, sobre a guerra e o quão injusto é isso que está acontecendo. Lamentamos que setenta e cinco por cento dos russos apoiem o governo de Putin (mesmo?). Pensei que isso seria o mesmo que ter setenta e cinco por cento de extremistas de direita no Brasil. Mas as coisas sobre a Rússia são mais nebulosas e complexas: eles vivem num grande grupo de WhatsApp privado.
É possível lamentar, seguir inconformada mas certa de que a propaganda russa funciona — e isso não quer dizer que necessariamente os russos são pessoas horríveis, estúpidas, manipuláveis. Aliás, todas os que eu conheço discordam da guerra e da ideia de mundo russo (“Russkiy Mir").
Os americanos da mesa — sim, tínhamos americanos também — logo pontuaram que é o mesmo movimento que aconteceu com a eleição de Trump. Eu citei o bolsonar1smo, a fixação pelo WhatsApp e o papel das igrejas evangélicas. É tudo uma grande conspiração terra-planista. Concordamos uníssono: é um culto. As pessoas são fanáticas. Distorcem até o que o próprio líder diz, se conveniente for.
Ouvi uma conversa do meu lado e achei que era PT-BR. Era russo. Algumas palavras soam parecido e na Rússia eles também falam “tipo” que nem a gente: sabe? Tipo…
Quando a guerra da Rússia contra Ucrânia começou, em fevereiro, eu senti (embora nem se compare com quem está lá). A Finlândia faz fronteira com a Rússia e, sei lá. Acordei assustada com o portão do prédio batendo, achei que era o Putin. Ufa, não era. Eu estava obcecada, lendo tudo para saber se ia precisar sair correndo.
E teve um dia que testaram a sirene que avisa à população sobre perigo, mas não ouvi nada.
Aqui em Vilnius, não é difícil ver pessoas reunidas fazendo algum tipo de protesto ou homenagem às pessoas que morreram nos confrontos (como na foto acima). Embora a Lituânia não esteja na guerra — está na OTAN desde 2004 —, a memória ainda está fresca: a Rússia ocupou a Lituânia de 1940 até 1991, quando a URSS foi desfeita.
É estranho e interessante estar num cenário dos acontecimentos de importância mundial dos livros de história. Parecia ser só história, mas não é. Quando adolescente, atravessar o mundo era uma ideia inviável, nem cogitava. E talvez por isso, vibrei ao ler “Glasnost” no Museu das ocupações e lutas pela liberdade. Serviu para lembrar que tem a ver com “glass” e transparência.
Esse museu é mais uma das homenagens aos que lutaram pela liberdade e é também uma forma de dar o nome certo ao que aconteceu para que o passado não se repita. O prédio é uma sede da extinta KGB — serviço secreto russo famoso por envenenar inimigos do estado e também o buraco de onde Putin saiu. No subsolo, tem uma prisão que dá para sentir um pouco do horror que é viver sob um estado genocida.
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Em São Paulo, o Memorial da Resistência expõe o terror, a perseguição, a censura e as torturas da ditadura civil-militar (1964-1985), mas aparentemente é pouco, porque muitas pessoas no Brasil pedem pela volta da ditadura, contra a liberdade.
Não deu para ver muito em dois dias, mas entendi que mesmo sendo um país tão pequeno territorialmente, a Lituânia não é só os resquícios da URSS e respingos da guerra. Vilnius é uma capital próspera e muito segura, rica culturalmente. Quem sabe eu volte no verão.
Alguém vai gostar receber esse texto por e-mail, encaminhe.
Até o próximo domingo,
Tássia
Que relato maravilhoso! Eu tenho uma curiosidade enorme sobre as questões e comportamentos das pessoas soviéticas, porque nasci num mundo capitalista, apesar de “terceiro mundo” muito pautado no ideal americano, que julgo totalmente estapafúrdio.