Queria escrever como Clarice
Gosto amargo açucarado pela forma que cutuca de um jeito bom.
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Queria escrever como Clarice. Quarta-feira, depois do almoço, café passado, casa arrumada, cigarro apoiado no cinzeiro. As teclas da máquina dando voz à poeira varrida para debaixo do tapete e imprimindo no papel o que dá vontade de esconder. O desconforto de tirá-las daquele canto escuro traz certa satisfação. Um café ruim que a gente aceita. Gosto amargo açucarado pela forma de escrever que cutuca de um jeito bom. As palavras de Clarice acertam as zona erógenas do nosso cérebro.
Um choro leve, sorridente e agoniado pela vontade de continuar, mas impossibilitado pelo cansaço que desliga meu corpo. A primeira vez que cansaço e alegria se manifestam pela mesma razão. A astróloga falou que o certo a se fazer é o que está dando certo. O que está dando certo.
É injusto que a gente tenha que ter algum privilégio para viver isso — me irrita ter tido que esperar tanto, mas não vou implicar com o passado.
Vamos em frente.
Talvez por isso você não escreva.
Fazer, fazer, fazer não combina com a rotina de escrita. Conversei com Ana outro dia e ela concordou. A escrita — outras artes não me cabem — precisa de espaço para respiro. Inspirar profundamente e expirar pelo tempo que o ar precisar para sair completamente e oxigenar.
A energia da escrita é a mesma da que realiza coisas, porém mais espaçada, como um ambiente minimalista. Uma sala de museu moderno com obras afastadas e respiro entre uma e outra. Você caminha com as mãos cruzadas para trás, um indicador segurando o outro. Vai lentamente enquanto mastiga a mensagem que aquela peça lhe deu. Engole antes de chegar na próxima para não se engasgar.
Para que a mensagem exista, é preciso espaço em branco.