Olá, pessoal! Tem muita gente chegando no Brunch nas últimas duas semanas graças às recomendações. Muito obrigada a todas que recomendam o Brunch 💖
Toda bruxa tem algo de rebelde, subversivo. Bruxas cruzam uma fronteira que não é permitida às mulheres. Não querem ser boazinhas e não existe bruxa boa. Bruxa é desobediente, fora da lei. É a esposa rabugenta que não tem paciência de cuidar nem de marido, nem de filhos, nem das pessoas que precisam ser cuidadas. É a mulher que não abaixa a cabeça ou que não esconde seus desejos. Invejo essa mulher que foge a regra, que incomoda, que não se deixa domesticar, não pode ser adestrada.
Longe de mim criar uma definição absoluta — mas eram essas as bruxas que iam para a fogueira e também as que vão para a fogueira do cancelamento ainda hoje.
No mundo patriarcal, desde sempre, as mulheres são as primeiras reprimidas quando a “paz” é quebrada. Precisam ser mantidas em ambiente doméstico, cuidando do lar, preparando o jantar para os trabalhadores cansados e parindo novos homens que fazem a roda girar.
Se você já quis ler o Calibã e a Bruxa, mas teve dificuldade, este texto é para você. E se você não sabe quem é o Calibã e muito menos a Bruxa, é mais ainda para você.
Tenho curiosidade por absolutamente qualquer coisa que tenha a palavra “bruxa”. Pode ser uma série infantil, ou o livro de Silvia Federici, conhecida por seu trabalho sobre feminismo e reprodução social. Foi assim, inclusive, que conheci Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva” (2004). No primeiro contato, achei que não era para mim porque é um livro das “feministas acadêmicas”. Federici discorda dos marxistas que enquadram a exploração no capitalismo exclusivamente em termos de relação entre capital e trabalho assalariado. Mas eu nem li O Capital, sabe?
Mesmo assim, comprei a edição belíssima da Editora Elefante, encorajada pela minha irmã (obrigada, Lái). Porém, não é uma leitura simples, para ler de bobeira depois do trabalho. Eu ficava indo e voltando. Até que, recententemente, descobri Mulheres e Caça às Bruxas, da mesma autora. Um livro curto para alcançar um público mais amplo e escrito para todas as pessoas que buscam entender as relações de poder no patriarcado. A leitura rápida e fácil serve de introdução para o Calibã, ou para começar a estudar as questões que Federici abraça.
Agora, vai.
Vigilantes de si mesmas
Sempre me vigiei, para não errar, pecar, mentir, engordar, adoecer, desagradar. A educação cristã foi impecável. Mesmo sem batismo e confissão na igreja, me mantive vigilante para não me tornar uma pessoa ruim, pecadora, do mal. E tem algo nessa busca pelo autocuidado, autoconhecimento, autoestima que me lembra a vigilância das mulheres que viviam assombradas pelo medo da Santa Inquisição, a maior influencer da ideologia patriarcal. A Inquisição promovia misoginia e demonização das mulheres para justificar a opressão e a violência entre o final da idade média e começo da idade moderna (séculos XIV e XVII, mais ou menos).
Na época da caça às bruxas, o Estado deixou claro que sobreviveriam as mulheres que aceitassem o ambiente doméstico, cuidando do lar, preparando o jantar para os homens cansados e parindo os futuros trabalhadores que fariam a roda da Revolução Industrial girar.
A caça às bruxas não foi exatamente sobre a prática de magia (exceto se fosse abortiva), mas sim sobre violência e perseguição para manutenção de poder e acumulação primitiva. Isto é, classes dominantes tomando terras e recursos das pessoas comuns e limando a subsistência para todo mundo virar trabalhador assalariado nas indústrias emergentes. A mulher rebelde que não queria parir ou cuidar dos trabalhadores era pendurada. Depois ia para fogueira.
Para sobreviver, era preciso vigiar a própria submissão e obediência. Parecer obediente, para não levantar suspeitas. Parecer doce e virginal, porque os desejos sexuais eram um passaporte vip para a sala do inquisidor. Se um homem se sentisse seduzido, ele poderia simplesmente acusar a mulher de ter feito um pacto diabólico para seduzi-lo. Era preciso ser silenciosa, invisível, não muito magra, não muito gorda, nunca falar demais, mas também não ficar muda — qualquer comportamento poderia se tornar suspeito.
Figuras como Pierre de Lancre, espalhavam ainda mais terror. Esse red pill inquisidor famoso do século XVII era um dos que dizia que Lúcifer tinha apreço por mulheres, especialmente se fossem jovens e belas. Lancre acreditava na “marca do Diabo” e culpava Satanás por tornar a mulher irresistível, como uma ovelha suculenta para um lobo faminto. Ele dizia que a “marca” era insensível à dor e por isso a investigação era feita com objetos pontiagudos. Para sobreviver, ficávamos quietas, nos vigiávamos e passamos a sussurrar.
A caça às bruxas deixou de ser oficial, mas ainda me sinto perseguida e vigilante de mim mesma. Autocuidado, terapia, não posso enlouquecer, não posso desagradar, não posso incomodar, não posso fracassar, não posso envelhecer. Chorei porque não me sinto segura profissionalmente como me sentia no Brasil, tenho medo de me tornar uma sanguessuga que não colabora com o mundo. Preciso toda hora provar que fiz algo para merecer e se desconfio de que não mereço, eu mesma me acuso e me condeno.
Talvez por isso sonho em ser bruxa. Invejo até mesmo as vilãs. Porque toda bruxa tem algo de rebelde, subversivo. Elas cruzam uma fronteira que não é permitida às mulheres. Não querem ser boazinhas e não existe bruxa boa. Bruxa é desobediente, fora da lei. É a esposa rabugenta que não tem paciência de cuidar nem de marido, nem de filhos, nem das pessoas que precisam ser cuidadas. É a mulher que não abaixa a cabeça ou que não esconde seus desejos. Invejo essa mulher que foge a regra, que incomoda, que não se deixa domesticar, não pode ser adestrada.
Longe de mim criar uma definição absoluta — mas eram essas as bruxas que iam para a fogueira e também as que vão para a fogueira do cancelamento ainda hoje. Elas têm a liberdade de não sentir tanto medo, ou a coragem de desafiar a ordem patriarcal. Podem viver sem vigias, honrando a própria autenticidade.
Quero ser uma bruxa má.
BÔNUS TRASH (adoraria que não existisse)
Alguém vai lembrar da “Bruxa do Guarujá” que foi linchada devido a um boato de que uma mulher estaria roubando crianças para fazer bruxaria. Essa história aconteceu em 2014 e se parece muito com as histórias da idade média.
Ainda hoje mulheres são executadas sob acusação de bruxaria em países africanos e, na Arábia Saudita, existe uma lei que proíbe a bruxaria.
Em 2017, de todas as mulheres assassinadas no planeta, 58% foram mortas por alguém da família. Lerner, Gerda. A Criação do Patriarcado (p. 19).
Vim aqui, depois do texto dessa semana. Tô apaixonada pela tua escrita e amarrações. Vontade de sentar contigo, com brunch e tagarelice.
O capitalismo mora nos detalhes. Séculos de adestramento a base da violência para que sejamos exatamente o que querem, para saciar desejos. O que acho pior nisso tudo é que hoje em dia a caça "as bruxas" é ainda mais disfarçada e a roda aniquiladora de mulheres continua a todo vapor....